Frei Mariano S. Foralosso OP
No dia 26 de Dezembro de 2003 no convento Sagrada Família em São Paulo frei Giorgio Callegari nos deixou. Operado de um tumor maligno na cabeça, amargou oito meses de sofrimentos com idas e voltas entre o convento e o hospital até que o mal conseguiu vencer. Frei Giorgio era natural de Veneza, com 27 anos de idade se fez dominicano, foi missionário no Brasil por mais de trinta anos. Com seu compromisso teimoso e corajoso ele deixou para todos nós a mensagem e o exemplo de uma vida dedicada ao bem dos irmãos empobrecidos, na defesa da justiça e da dignidade e sacralidade da pessoa humana. Os Centros da Juventude que ele fundou e ajudou a fundar ainda continuam dando seus bons frutos de promoção humana para tantos menores desfavorecidos das favelas de São Paulo e Peruíbe.
Quando frei Giorgio veio ao Brasil no começo de 1967 o nosso país passava por um dos momentos mais difíceis de sua história, amordaçado por uma ditadura militar cruel que, em nome da luta contra o ‘perigo comunista’ negava e pisoteava os mais elementares direitos humanos, e as forças vitais na nação eram sufocadas sob um regime de repressão e de terror. Muitos setores da sociedade estavam resistindo à repressão da ditadura. A Igreja Católica, que num primeiro momento tinha abençoado o golpe militar como a salvação do Brasil do ‘perigo comunista’, estava tomando consciência da natureza e dos objetivos verdadeiros do regime e se tornou um espaço de articulação dos movimentos populares que lutavam para a liberdade e a democracia. Naquele contexto de repressão ela se tornou a única instituição da sociedade brasileira que o regime militar não conseguia controlar e submeter. A ela se apoiaram movimentos e pessoas, também não católicas, comprometidas com a luta contra a ditadura. Todos a reconheciam como o único escudo contra a barbárie instaurada no País. Com certeza neste trágico período da ditadura militar (1964- 1985) ela escreveu uma das páginas mais gloriosas de sua história.
Também vários jovens estudantes dominicanos de São Paulo participavam ativamente a este movimento de resistência e pagaram duramente por sua coragem e coerência. Na noite de 4 de novembro 1969 o exército invadiu o convento das Perdizes e vários frades foram presos e encarcerados. Cinco deles permaneceram por mais tempo na cadeia como ‘prisioneiros políticos’: frei Tito, Ivo, Fernando, Betto. Os militares procuravam também frei Giorgio Callegari e o encontraram no convento Sagrada Família. Eles todos ficaram detidos no cárcere Tiradentes em São Paulo e dividiram a cela com mais de outros quarenta presos: leigos de várias categorias, religiosos e padres diocesanos. Frei Giorgio amargou mais de um ano de cadeia, com direito a interrogatórios e tortura. A grande maioria dos ‘presos políticos conheceram os horrores da tortura. Frei Betto deixou no livro “Batismo de sangue’” um testemunho sem igual desta triste experiência. Ele relatou de maneira especial os sofrimentos de frei Tito.
Frei Giorgio conseguia enviar clandestinamente a seus amigos da Itália uma série de cartas relatando suas experiências de prisão, os sofrimentos dele e dos companheiros, a luta para a liberdade. Estas cartas foram conservadas e agora estão publicadas em italiano num livro intitulado: “Lettere dal Tiradentes” Ele, por exemplo, descreve nestes termos o que se provava quando chegava a ‘convocação’: “Deixo você imaginar o que se sente quando chegam para lhe chamar na cela durante a noite dizendo: prepare-se para descer logo! É a angustia, a agitação, o nervosismo. Você fica como um animal que quer fugir. Você tem vontade de bater a cabeça nos muros, na porta da cela…” Era o chamado para o interrogatório, com direito a tortura!
Estavam presos à quase um ano sem uma definição de culpa. Para obrigar o governo militar a instaurar o processo, em setembro de 1970 frei Giorgio começou uma greve de fome, que teve grande repercussão internacional graças ao apoio dos amigos italianos. Dom Paulo Arns, arcebispo de São Paulo, deixou um testemunho de sua visita a frei Giorgio durante esta greve de fome. Ela parou no dia 1 de outubro, quando finalmente foi aberto o processo. Frei Giorgio ficou preso até 23 de Dezembro 1970, antevigília de Natal. Frei Tito foi liberado em janeiro de 1971 junto com outros setenta presos políticos, em troca de um embaixador que tinha sido sequestrado. Ele foi acolhido no Chile de Allende, depois foi para Itália e por fim na França, amparado com todo carinho pelos dominicanos do convento de Lyon. O trágico desfecho de sua história é conhecido. Os outros três frades, Ivo, Fernando e Betto, amargaram mais três anos de cadeia.
Frei Giorgio continuou sua luta contra o regime militar. Ele tinha recuperada a liberdade, mas era uma liberdade vigiada. Em 1974 foi expulso do país como pessoa não grata. Trabalhou alguns anos em vários países da América Latina, sobretudo no Peru. Depois, não aguentando a saudade do seu Brasil, voltou como clandestino e se escondeu numa favela da região sul de São Paulo: um daqueles ambientes onde a Polícia não tem muito entusiasmo a entrar. Aqui ele conheceu de perto a miséria e a marginalização em que vive o ‘povo a mais’ das favelas. Tomou consciência da situação indigna dos filhos deste ‘povo a mais’, os meninos e adolescentes, expostos aos perigos e à ‘escola’ da rua, mal alimentados, sem uma formação adequada que os prepare para a vida. Foi para ele um segundo ‘chamado missionário’, uma segunda vocação. Lutou com todas as suas forças, fazendo apelo à generosidade dos numerosos amigos do Brasil e da Itália e Suíça, para criar e sustentar vários Centros da Juventude onde estes menores são acolhidos, protegidos, alimentados e educados para a vida. Criou o CEPE como ONG de apoio para estes Centros, que se encontram nas periferias sul e norte de São Paulo e em Peruíbe, na baixada santista. Para a educação dos menores e o resgate de sua cidadania foi elaborada e aperfeiçoada uma metodologia pedagógica inspirada a Paulo Freire.
Junto com a ação social, frei Giorgio desenvolveu um amplo trabalho de reflexão social, política e teológica, promovendo uma experiência de catequese alternativa adaptada ao povo das favelas e publicando uma Revista que durou mais de vinte anos, até depois de sua morte: o “Revés do Avesso”. Nas suas ações em prol dos empobrecidos e na sua reflexão podemos colher uma mensagem importante que ele expressava nestes termos: “Precisamos salvar o homem. Não o homem abstrato, mas aquele que está perto de nós. O pobre que trabalha sem ter salário digno e sem as condições para sobreviver. O homem que vive marginalizado e não tem condições de se inserir na sociedade. O irmão ignorado por esta sociedade do deus mercado”.
A morte o colheu com as ‘mangas arregaçadas’, totalmente entregue ao serviço dos seus ‘meninos’ dos Centros da Juventude e do ‘povo a mais’ das favelas. Lembro com emoção o episódio de sua última despedida no cemitério do Santíssimo Sacramento. Devido às dimensões generosas do seu físico tínhamos providenciado para ele um caixão tamanho GG. Na hora de colocá-lo no túmulo nos demos conta de que o lóculo era estreito demais. Foi preciso esperar mais de uma hora até que os operários do cemitério ampliassem o espaço. No cemitério tinha mais de cem pessoas de todo tipo: eram amigos vindos para a última despedida do frade amigo. Enquanto se esperava, um e outro davam um testemunho de sua ‘história’ com Giorgio, alguém entoava um ou outro dos cantos que Giorgio amava cantar, tais como “A jangada”, “Gracias por la vida”, “Bella ciao”, etc. O pastor Mozar da igreja Luterana, grande amigo do Giorgio, tinha começado a falar, dando seu testemunho. Estava presente também o nosso saudoso frei Humberto. Já um pouco surdo, ele não percebeu que o outro estava falando e começou também a falar. A primeira frase nos assustou um pouco: “Frei Giorgio, você nos incomodou a vida toda!” O que o velho vai dizer?! Mas nada: foi um dos testemunhos mais bonitos sobre esse frade ‘incomodo’, que sempre lutou contra as injustiças e a opressão e nuca deixou de sonhar com um ‘mundo diferente’, mais justo e humano para todos.
Na ocasião dos dez anos da morte de Giorgio a amiga jornalista Umberta Colella de Milão publicou um belo livro que faz ampla memória do itinerário de vida desse frade incomodo. O livro leva um titulo bem significativo que sintetiza muito bem a vida e a missão de frei Giorgio: “La rabbia e il coraggio: Giorgio Callegari in cammino tra i popoli dell’ América Latina”. A indignação e a coragem! A vida desse filho de são Domingos foi mesmo marcada por estas duas atitudes: a indignação frente das injustiças e a coragem em criar respostas que fossem solução dos problemas, mas também profecia de um mundo diferente. Os Centros da Juventude criados por frei Giorgio tem realmente um potencial de ‘profecia social’, mostrando como, com um pouco de boa vontade, é possível construir respostas eficazes junto aos empobrecidos, e proclamando que os empobrecidos tem dignidade e direitos, e representam uma riqueza para a sociedade, sobretudo a nova geração.
Foi produzido anos atrás pela TV Suíça um documentário sobre a obra social de frei Giorgio. Numa primeira parte dá para ver os grandes prédios de São Paulo com muitos helicópteros indo em todas as direções. Frei Giorgio comenta: “Quem anda de helicóptero vê as coisas de cima e de longe; não vê os sofrimentos e as expectativas dos empobrecidos.” Uma outra parte do mesmo filmado mostra um ambiente de favela com os barracos e muitos meninos brincando na rua. Frei Giorgio comenta: “Se você acredita que todo ser humano tem dignidade e direitos, se você é cristão e acredita que todos somos filhos de Deus, então como pode ficar indiferente e não arregaçar as mangas para fazer algo, para mudar as coisas?”
Não é fácil, neste breve espaço, fazer memória destes quinze anos depois da morte de frei Giorgio: foi tempo de lutas e de conquistas, mas também de grandes dificuldades enfrentadas por quem herdou a Obra e o sonho do ‘frade incomodo’. Confesso que várias vezes me aconteceu de desejar que frei Giorgio voltasse, para ele continuar a sua grande Obra… Às vezes, nos momentos de festa e de alegria, a gente teria sonhado que frei Giorgio pudesse deixar seu paraíso e voltasse na Colônia Veneza e nos demais Centros da Juventude para fazer festa com seus meninos.
Se ele voltasse entre nós hoje encontraria tantas belas novidades. Na Colonia Veneza poderia ver os mosaicos da capela terminados, a nova grande sala para os encontros e as celebrações, a quadra esportiva coberta, a banda musical, a orquestra, a escola de balé e tantas outras coisas pequenas e grandes que representam as conquistas materiais destes anos. Ele encontraria, sobretudo, a Colônia Veneza e demais Centros da Juventude cheios de meninos e de vida! Encontraria o grande projeto educativo de resgate da cidadania já consolidado e feito uma referência exemplar também para outros Centros da Juventude.
Em São Paulo frei Giorgio encontraria uma bela surpresa: o seu projeto da Escola Esperança plenamente realizado, com mais de cem jovens das favelas frequentando seus cursos, se preparando para o mundo do trabalho e para uma perspectiva de vida mais digna. Ele tinha sonhado esta obra e nós a realizamos depois de sua morte. Perto da Escola Esperança encontraria em plena atividade o Centro Santa Therezinha. Um pouco mais longe o Centro frei Tito e mais longe ainda, nas favelas da periferia norte, os Centro Vila Nova Curuçá, Cidade Nova e Jardim Japão. Ele ajudou a criar todos esses Centros que agora continuam sua missão de acolhida e formação dos filhos do ‘povo a mais’, que ele tanto amou, para cujos direitos muito fez e muito lutou. Neste momento de incerteza para o nosso país podemos e devemos afirmar, com a mesma coragem e teimosia de frei Giorgio: apesar de tudo, um mundo diferente é possível!
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